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O Passado e Agora
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O Passado é Agora
O Homem andava pela escura rua, uma pequena descida na periferia da cidade. A luz da lua era capaz de iluminá-lo mais do que os postes mal posicionados – frutos de um local decadente.
Mentalmente contava seus passos. Dentro de seu casaco carregava um pequeno cantil de aço que já o acompanhava há anos. Seu cabelo – nem muito curto, nem muito longo – estava emaranhado e sua barba denunciava a falta de cuidados que tinha consigo mesmo. Trilhava seu caminho rotineiro, como fazia toda sexta-feira.
Saía do trabalho exausto, porém diferente de todos os cidadãos que procuram um happyhour com os amigos ou encaminham-se direto para seus lares para passar um fim de dia agradável com a sua família, o Homem dirigia-se para um mesmo bar; em um beco esquecido, onde o cheiro de urina e álcool se mesclava, onde o sexo sujo e doente possuia o preço de um almoço, onde os viciados mergulhavam na escuridão.
Seus amigos mais próximos, sua esposa e colegas de trabalho já notaram seu costume. Sua esposa tentou conversar sobre o assunto, ele não se lembra muito bem do que aconteceu durante a discussão e até hoje pede a Deus – se é que ele existe – para que aquele hematoma que ela possuía no outro dia não houvesse sido feito por ele. Ele nunca perguntou se o fez, e ela nunca mais mencionou a discussão. Uma das condições humanas: preferir a ignorância dos fatos a enfrentar a cruel verdade e enfrentar a própria – e distorcida – faceta.
Ao longe estava o seu motivo, parado em uma esquina distante ao lado de uma cabine de telefone pichada pelas mais diversas gangues em sua marcação de território. Vestia-se com um terno preto sem graça e uma camisa branca.
Já havia três anos que seguia essa rotina: toda semana ele passava por essa maldita rua para ver esse cara. Lembra-se perfeitamente de como tudo começou e de como era sua culpa. Sentiu como se uma faca atravessasse sua garganta, a culpa pesava e machucava. Não importa quanto tempo passe ela nunca machucará menos; não importa o quanto ele chore, o quanto ele beba, o quanto ele fume: a realidade nunca mudará.
Ouviu uma voz melosa:
– Ei gato, te chupo por cincão, tá a fim? Sô melhor que sua esposa... – Acrescentou.
– Não, obrigado – a voz do Homem era rouca.
– Cê é viado, é? – perguntou a prostituta de cabelo loiro oxigenado.
Seus seios estavam à mostra e o pouco de peças de roupa que vestia era transparente. Seu rosto era maltratado e ele podia jurar que havia uma ferida coberta por pus no canto de seu lábio, mas a falta de luz não o permitia discernir com clareza. Ela devia ter no máximo vinte anos.
Ele a ignorou e continuou andando. A jovem protestou um pouco e logo partiu em busca de outro cliente. Já estava acostumado a lidar com putas e viciados, algumas delas já até sabiam quem ele era e nem sequer ofereciam seu serviço.
Continuava a caminhar em sua rotina, passaria pelo outro lado da rua onde a cabine telefônica e o rapaz de terno estavam. Pela rua – em portões fechados de saguões abandonados – havia mendigos dormindo em conjunto, dividiam apenas um cobertor e juntavam-se para que seu calor superasse o frio da madrugada. Às vezes, durante os anos, encontrara alguns viciados e bêbados jogados no chão.
Nos primeiros dias o Homem perguntava-se porque estava neste local. Não se sentia bem ali, entretanto com o passar dos anos ele começou a sentir que pertencia a tudo aquilo. Ele merecia aquele lugar: a doença, o vicio, o vulgar. Era sua punição.
Ele chegava ao fim de sua rotina: o pequeno instante em que cruzava seu caminho com o misterioso rapaz. O deleite de mais um momento, a felicidade na falcatrua, a verdade dentro da mentira.
E pela primeira vez durante esses três anos algo fora de sua rotina aconteceu: o rapaz retribuiu o seu olhar. Seu coração disparou, a esperança alcançou sua alma outra vez. Ele pôde sentir seu estômago embrulhar-se como da primeira vez em que conversou com uma mulher. O rapaz lhe lançou um sorriso sincero e atravessou a rua em sua direção.
– Você passa toda semana aqui pra me ver e nem tem a educação de dar oi!? – Protestou ao longe – Sou a merda do seu irmão apesar de tudo!
Ouvir a voz do seu irmão o maravilhou. Ele sentiu, por instantes, uma vontade súbita de viver; de largar seus péssimos hábitos e enfrentar seus demônios internos.
– Lucas! – Sua voz estava trêmula – Me desculpe, por favor, me perdoe! – Implorava.
– Calma! – respondeu o irmão – Não me venha com essa... Aquelas coisas já estão no passado, e o passado está morto.
– Mas... – o Homem parecia transtornado e incrédulo.
Lucas o abraçou: um abraço fraterno que limpou sua alma. Estava mais calmo e seus olhos encheram-se de lágrimas.
– Vamos dar uma volta. – Lucas disse enquanto o abraçava fortemente – Temos muito que conversar. Você está de carro?
O Homem apertava com toda a força o irmão entre seus braços.
– Não, não gosto mais de dirigir por esses lados da cidade. – Sua voz ainda estava trêmula.
– Acho que entendo o porquê... – Lucas fez uma breve pausa – Venha, eu conheço uma lanchonete aqui perto.
Eles caminhavam para um ponto menos soturno da cidade enquanto dividiam informações sobre suas atuais vidas. O número de prostitutas nas calçadas diminuiu e já era possível ver um fluxo normal de carros andando pelas ruas.
Após o que pareceu uma breve caminhada os dois homens chegaram ao seu destino. A Lanchonete XisTudo – um nome bem simples, refletindo o lugar – as mesas eram de plástico cheias de propaganda de cervejas. Os azulejos estavam manchados pela gordura e os refis de temperos não pareciam confiáveis.
Sentaram-se em uma mesa de canto.
– Você tá com fome? – Perguntou o Homem.
– Não, você está? – Retrucou Lucas.
– Também não... Acho que vou só tomar uma cerveja.
Uma garçonete de aparentemente quarenta anos e gorda chegava à mesa interrompendo a conversa.
– O que cê vai querê, moço?
– Uma garrafa de cerveja, por favor. – Respondeu o Homem.
Lucas rapidamente chamou a atenção de seu irmão:
– Eu não bebo mais...
– Ah... – Fez uma breve pausa. – Quanto custa uma jarra de suco de laranja?
– Seis real. – Respondeu a garçonete um pouco confusa.
– Me traga uma. – Disse o Homem.
– Mais alguma coisa, moço? – Perguntou impaciente enquanto anotava o pedido em um bloco de notas.
– Não, é só isso. – Respondeu.
A garçonete os deixou tomando direção ao balcão, do qual um homem gordo - provavelmente seu marido - tomava conta. Os irmãos retomaram a conversa sobre a vida.
– E como está Janete? – Perguntou Lucas com certa tristeza.
– Ela está melhor agora... A separação entre vocês foi muito súbita. – Após uma pausa ele acrescentou – E as crianças estão bem também, o Alex foi o campeão na modalidade dele de natação.
– Eles ainda falam de mim? – Uma mistura de nostalgia com tristeza percorreu a voz de Lucas.
– A Janete guarda algumas fotos suas... E do lado da cama das crianças tem um porta-retratos seu. – Era realmente verdade o que o Homem havia dito.
– Entendi... E... Ela tem alguém? – Perguntou relutantemente, ele queria saber a resposta, mas não queria ouvi-la.
– Não que eu tenha ouvido, Lucas. – Respondeu sinceramente ao irmão.
A garçonete voltou com a Jarra de vidro antiga cheia de suco e um copo de vidro totalmente riscado pelo uso excessivo. Apesar da aparência feia, ambos estavam bem limpos – ou pelo menos aparentavam estar.
– Por favor, moça, você poderia trazer mais um copo? – Perguntou educadamente o Homem.
– Ah... – A moça fez uma breve pausa – Claro... Me disculpa...
A mulher encaminhou-se rapidamente ao balcão e os irmãos continuaram a conversa.
– Eu acho que você deveria parar de beber. – Disse Lucas mudando de assunto.
– Eu já tentei... Mas eu não consigo... Você entende o porquê, não entende?
– Você precisa aprender a aceitar... Entender que a vida continua... – Lucas falava serenamente. – Só os mortos ficam parados no passado.
A garçonete voltou com outro copo de vidro, colocou-o sob a mesa e saiu sem proferir uma palavra.
– Vou parar... Prometo a você. – Disse verdadeiramente.
Lucas esboçou um sorriso e calou-se. O Homem bebia o suco de laranja enquanto seu irmão olhava pensativo para a rua pela grande entrada do estabelecimento. O silêncio permaneceu entre os dois por um bom tempo. E apesar de tudo, o suco era bom.
– Vamos dar uma volta? – Indagou Lucas subitamente.
– Por onde? – Perguntou o Homem.
– Por um lugar que nós conhecemos bem... – Após um silêncio ele acrescentou. – Vai ser bom.
Levantaram-se. O Homem pagou a conta, pediu para usar o banheiro e depois de aliviado ambos saíram do estabelecimento.
Seguiam por um trajeto extremamente familiar para o Homem. Um caminho que lhe conduzia a péssimas memórias: ele dirigira seu carro por essa rua enquanto brigava com seu irmão que estava sentado no banco de passageiro. Sua mente preenchia seus sentidos com o cheiro do pó do carro, o barulho da chuva daquele dia. Seu coração sentia a apunhalada do remorso, o arder da culpa.
– Por que temos que andar por aqui? – A voz do homem estava trêmula novamente.
– Porque você está preso aqui... – Respondeu seu irmão.
– Não faça isso comigo, Lucas, por favor... – Sua voz estava fraca. As feridas do passado começavam a abrir.
– Apenas venha comigo, prometo que vai dar tudo certo...
– Mesmo? – Uma necessidade de confirmação dentro da própria vulnerabilidade.
– Sim. – Respondeu Lucas firmemente.
A rua era larga, dava para dois carros andarem lado a lado e ainda sobrava espaço para outros carros estacionarem. A maior parte das construções eram lojas, bares, estabelecimentos comerciais e estavam quase todos fechados.
O Homem sabia para onde estava indo, se seguissem essa rua e ao seu fim virassem a esquerda iriam desembocar na grande Rodovia. Passavam agora em frente a uma galeria de lojas fechada, durante aquela noite ela ainda funcionava e suas luzes marcavam o vidro molhado do carro. A partir dela lembrou-se da discussão:
" – Não fale desse jeito comigo! – Exclamava Lucas.
– Cala a boca! Você fodeu com tudo... Tudo! Demoramos anos para construir tudo que temos e você fodeu com tudo... PORRA. – O rosto do Homem estava vermelho, a veia da sua testa estava inchada. "
Lembrou-se da sensação da garganta ardendo ao gritar em plenos pulmões. Um sentimento ruim se apossou de seu corpo, odiava lembrar-se daquele dia. Não gostava mais de dirigir por causa disso, não gostava de dias chuvosos por causa disso.
– É tudo passado agora... Caminhe... – Lucas estava ao seu lado com a mão em seus ombros.
– Eu não queria ter dito aquelas coisas para você... Eu juro...
– As palavras proferidas não somem jamais, Irmão. – Suspirou.
– Eu queria voltar... Queria fazê-las voltarem. – O remorso era óbvio em sua voz.
– Não há como voltar, o passado está morto. – Colocou a mão em suas costas – Siga em frente, é o único jeito. Há outras pessoas que dependem de você.
Caminhavam por entre as lojas e passaram em frente a um posto de gasolina, havia pessoas dentro da loja de conveniência do posto tomando cerveja e os frentistas estavam conversando perto das bombas, o movimento noturno estava calmo. Permaneceram em silêncio, o Homem revivia os momentos daquela noite conforme andava e seu irmão apenas o confortava com o braço entre seus ombros.
Chegavam ao fim da Rua, a conexão da mesma com a Rodovia. As luzes dos carros riscavam o breu noturno. A luz amarelada dos postes mal conseguia iluminar as calçadas para os pedestres. Havia grandes outdoors, letreiros luminosos preenchendo a visão noturna e ao longe era possível se ver os viadutos que cortavam a rodovia.
O Homem ao ver aquele local fechou os olhos lacrimejantes. Não queria se ver ali novamente, nunca mais... Queria voltar ao passado, desfazer o que havia sido feito. Por que ele sobreviveu? Por que só ele?
" – MEUS FILHOS ESTÃO PASSANDO FOME, CARALHO! – O Homem gritava como um trovão – SABIA QUE VOCÊ É UM ERRO!? MAMÃE NUNCA QUIS TER ENGRAVIDADO DE VOCÊ!
Lucas permaneceu quieto. Não olhava para seu irmão, apenas observava a rua pela janela enquanto as palavras afiadas de seu irmão o dilaceravam.
O Homem tirou os olhos do trajeto e colocou-os sobre seu irmão:
– EU NUNCA ACHEI QUE VOCÊ FOSSE UMA MERDA DE ERRO, MAS HOJE ENTENDO. VOCÊ TERIA SIDO MIL VEZES MELHOR MORTO DO QUE VIVO.
Lucas exclamou o nome do irmão e fora encoberto pelo som agudo de uma longa buzina. "
Lembrou-se da luz ofuscante dos grandes faróis; da buzina ensurdecedora; do barulho do vidro estilhaçando-se, do som das rodas do gigante caminhão derrapando. Lembrou-se da água e do sangue umedecendo seu rosto. Lembrou-se da sensação de ardência. Lembrou-se de seu irmão preso entre ferragens. Lembrou-se de mais nada.
– Você me perdoa? – Não sabia se estava falando com seu irmão ou consigo mesmo.
– Não sou eu que tenho que lhe perdoar. – Respondeu Lucas.
– Eu não queria ter te falado aquilo...
– Então não deveria... – Respondeu secamente.
– EU TE AMO, LUCAS! – Gritou como uma criança em desespero.
– Agora é tarde demais... Eu não estou mais aqui.
O Homem ajoelhou-se no chão em prantos. Odiava-se ao ponto de cogitar se matar. Batia-se, socou o próprio rosto o mais forte possível, socava o chão e as próprias pernas.
– Espero que um dia você entenda... E que um dia encontre a paz como eu encontrei. – Comentou Lucas. – Até sexta que vem...
O Homem olhou para seu irmão, mas ele não estava mais lá... E durante o resto da noite chorou como uma criança que perdeu os pais, acompanhado apenas do som dos carros cortando a gigante Rodovia e do seu hálito de álcool. Abraçou os próprios joelhos e pediu para que jamais houvesse nascido, ou talvez para que fosse ele o homem no banco de passageiros.
Mas agora é tarde demais, agora é passado. E para ele o passado sempre será agora.
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Nossa eu achei lindo e triste, eu odeio passado, parece que ele nunca morre. Mas a vida continua, seu conto é lindo...